Em uma disciplina que estou ministrando neste semestre, na qual utilizo a obra Psicologia da Educação Virtual, organizada por César Coll e colaboradores, chegamos ao momento de discutir o assunto “nativos digitais”. Dentre os múltiplos “rótulos” que circulam na área das TIC na Educação no momento, esse tem recebido cada vez mais destaque na minha lista de pet hates / weasel words. Ressinto-me, obviamente, de ser categorizada como “imigrante digital” :-), que me parece ter conotações bem pejorativas, além de constituir uma generalização infundada, ou seja, “ponto” para as linhas do tipo de pensamento maniqueísta que me incomoda profundamente.
O capítulo 4, “O aluno em ambientes virtuais: condições, perfil e competências”, de Carles Monereo e Juan Ignacio Pozo, sugere que “idade” não é a única dimensão de diferença nas relações entre TIC e seres humanos. Ótimo. Excelente começo. Porém, como os próprios autores admitem, grande parte do capítulo é tomada por especulações acerca das transformações que as tecnologias digitais estão causando (?) na “mente” humana, compreendida segundo uma abordagem que destaca as relações entre “mente” e cultura proposta por Merlin Donald (1991) (veja aqui uma resenha do livro escrita pelo próprio autor).
Como contraponto para apimentar a discussão com provocações em outras direções (sempre para que eu possa destacar a importância de dados empíricos), pegarei emprestado alguns trechos do livro Deconstructing digital natives. Young People, tecnology and new literacies, organizado por Michael Thomas. Compartilho, então, abaixo, uma tradução (como sempre, apressada) do prefácio, escrito por David Buckingham – talvez seja de interesse para além do meu grupo de alunos.
Há duas palavras problemáticas – bem, várias, como sempre, mas vou ficar com estas: generationing e affordances. Deixei-as no original, pois são acompanhadas de alguma explicação. A segunda, affordances, é um termo bastante disseminado na EdTech e, quando tiver outro fim de semana para postar divagações, vou ajeitar minhas anotações sobre isso e compartilhar – um dos significados coloquiais é “possibilidade”, mas grande parte da discussão acadêmica que adota a palavra tem ligações com os significados específicos dados a ela por J. J. Gibson em seu artigo The theory of affordances e em trabalhos subsequentes, e há muitas concepções diferentes e conflitantes.
Desconstruindo “nativos digitais” – Prefácio de David Buckingham
A ideia de que há um conflito de gerações de natureza tecnológica ou midiática não é, de forma alguma, nova. Pode-se olhar para trás, para a década de 1960, quando a ideia de uma “geração televisiva” era popularmente utilizada como um modo abreviado de explicar mudanças sociais; há, também, uma longa história de afirmações semelhantes utilizadas em relação a formas anteriores de cultural popular. Tais ideias são uma elemento fundante de um tipo de “pânico moral”, ainda que suscitem, tipicamente, preocupações mais difusas e generalizadas com o impacto da modernidade. A ideia do conflito de gerações integra uma narrativa de transformação e, até mesmo, de ruptura, na qual destroem-se elementos fundamentais de continuidade entre o passado e o presente. Tais argumentos têm um apelo emocional considerável: ao alinhar afirmativas sobre as mídias e tecnologia com ideias sobre a infância e a juventude, proporcionam um poderoso veículo para algumas de nossos maiores esperanças e temores.
A ideia contemporânea de “nativo digital” – bem como formulações relacionadas, tais como a “geração digital” e a “geração net” – geralmente apresentam essa narrativa básica de forma positiva. O problema aqui não é com os nativos digitais em si, mas, sim, com o resto de nós, os “imigrantes digitais” que permanecem, teimosamente, amarrados a mídias mais velhas, sem sintonia com a atualidade. Tais argumentos frequentemente envolvem uma perspectiva utópica da tecnologia – um história fabulosa sobre como a tecnologia libera e empodera os jovens, permitindo que se tornem cidadãos globais e aprendam e comuniquem-se de formas livres e sem restrições.
Apesar de seu apelo popular, os problemas com essa narrativa são bem óbvios, e muitos deles são discutidos pelos colaboradores neste volume, que reúne uma gama de evidência empírica relativa ao assunto. Proponentes do argumento dos nativos digitais tipicamente superestimam os limites e efeitos das mudanças tecnológicas, ignorando elementos de continuidade. Ainda assim, a história da tecnologia sugere que a mudança, por mais rápida que seja, é geralmente incremental e não revolucionária. Apenas raramente, novas tecnologias simplesmente substituem as já existentes; além disso, há interseções e paralelos consideráveis entre mídias “novas” e “velhas”. As tecnologias não surgem do nada: são desenvolvidas, desenhadas e comercializadas em contextos sociais específicos, que refletem fatores econômicos, culturais e sociais mais amplos. As tecnologias têm possibilidades e limites (ou affordances), mas, sozinhas, não produzem mudança social.
O argumento dos nativos digitais também exagera as diferenças entre gerações, subestimando a diversidade entre elas. Muitos ditos nativos digitais não são usuários mais intensivos das mídias digitais do que os ditos imigrante digitais. Não são, de forma alguma, mais fixados nas tecnologias nem particularmente proficientes nelas, como se assume com frequência. Não têm, necessariamente, as habilidades, a competência ou a fluência “natural” a eles atribuída. Muito do que os jovens fazem com a tecnologia digital é mundano e nada espetacular: seus usos são caracterizados não por manifestações dramáticas de inovação e criatividade, mas, sim, por formas relativamente rotineiras de comunicação e obtenção de informação. As crianças da contemporaneidade têm tantos interesses, assuntos e preocupações quanto as crianças de gerações passadas – mesmo que as formas nas quais se manifestem por meio de seu uso da tecnologia seja diferentes.
Basicamente, o argumento dos nativos digitais tende a essencializar as gerações e, no processo, “exoticizar” os jovens, fazendo-os parecer inerentemente estranhos e diferentes. Há um sentimentalismo acerca das crianças e jovens que é familiar, combinado com um tipo de medo do que poderia estar acontecer com esta geração mais jovens. Enquanto parece positiva e comemorativa, essa caracterização dos jovens é, também, estranhamente desdenhosa: assume que o jovem espontaneamente sabe tudo que precisa saber sobre tecnologia, ao invés de ter que esforçar para aprender. Crescer com a tecnologia pode muito bem implicar uma orientação diferente com relação a ela, mas é, certamente, discutível, o quão duradoura será a diferença. Um dos desenvolvimentos mais impressionantes no Reino Unido nos últimos anos tem sido a rápida adoção da Internet entre indivíduos de meia-idade e idosos: ainda que possa haver um atraso entre as gerações, esse pode vir a ser progressivamente menos significativo.
Ao passo que a noção de conflito de gerações reflete persistentes esperanças e medos do futuro, ela também toma formas diferentes em situações culturais e históricas distintas. Pode haver, também, uma dimensão econômica. Poderíamos, certamente, analisar as afirmações de que os nativos digitais são um tipo de campanha de marketing, promulgada por indivíduos e empresas com bens e serviços à venda em um ambiente comercial volátil. Os jovens são, notoriamente, um mercado imprevisível, e o ritmo das mudanças tecnológicas parece estar acelerando. Consultores e especialistas que afirmam ter conhecimento privilegiado de insider deste mercado certamente se encontrarão em forte demanda. A combinação de apreensão, temor e desejos projetados na tecnologia parece ser intoxicante para diretores de empresas – e, de fato, governos – cujos negócios parecem cada vez mais precarizados.
Ainda assim, apesar de tudo isso, o conceito de uma mudança geracional permanece relevante e produtivo. Há um corpo de análise sociológica e histórica onde – por exemplo, na descrição em nível macro, de Karl Mannheim, da construção de gerações – o conceito poderia ser aplicado à transformação tecnológica de forma útil. Há, também, produtivas análises de como constroem-se gerações – e como as pessoas se definem como membros de gerações – em nível micro, de interações cotidianas. Na área de Estudos do Desenvolvimento, tem havido uma utilização considerável da noção de generationing, a ideia de que (tanto jovens quanto adultos) estamos constantemente nos definindo como membros de gerações por meio de performances identitárias variáveis. Esse processo se desenrola, em casa e na escola, também em termos de como as pessoas utilizam a tecnologia, no que elas dizem sobre isso e como a atividade de utilizar a tecnologia é produzida, construída e regulada. Assim, por exemplo, poderíamos considerar como os pais constroem seus filhos como experts em tecnologia, enquanto, simultaneamente, tentam monitorar e regular o que fazem com ela. A tecnologia frequentemente faz um papel complexo e ambivalente nessa construção mútua e continuada das gerações.
No entanto, essa abordagem requer o uso de um conceito de gerações que é mais reflexivo e crítico do que é tipicamente o caso nas discussões populares sobre o uso de tecnologia por jovens. Se desejamos compreender a natureza desigual e complexa da transformação social, bem como o papel da tecnologia nisso, precisamos de investigações mais cuidados e medidas, que prestem muita atenção à textura da experiência vivida. Este livro oportuno oferece uma contribuição significativa aos debates acerca das tecnologias digitais na educação, ressaltando o valor de uma abordagem baseada na pesquisa por meio da apresentação de evidência empírica e discussão de pesquisadores internacionais na área. Se – apesar de seus limites – o debate sobre os “nativos digitais” provocou esse tipo de colaboração e discussão internacional, então, talvez, tenha sido válido.
Obrigada por essas informações sobre este importante tema que é justamente o da minha dissertação de mestrado onde estou buscando bastante fonte de pesquisa.
Que bom que o material te será útil, Rosária – boa sorte em suas buscas!
Sem dúvida um artigo muito interessante. Um aspeto muito curioso que tenho observado é que atualmente as crianças parecem já nascer ensinadas. Com apenas alguns anos de idade já dominam tablets e até acham estranho que nada aconteça quando tocam no ecrã da TV. Alguns chamam-lhe geração touch-screen: http://www.estrategiadigital.pt/estamos-perante-geracao-touch-screen/. Parabéns!